Nós sempre ouvimos falar desse lugar, um dos circuitos preferidos do Beco e onde ele mais desejou vencer. Foram duas vitórias belíssimas aqui, lembra? Mas o que realmente nos impressionou foi a primeira curva de Interlagos. Não imaginávamos que o ‘S’ do Senna fosse tão gostoso de percorrer, um ‘S’ em descida que empolga e oferece desafio para qualquer carro. Vamos acelerar mais?” Essas foram as primeiras palavras dos emocionados Audi S4 Avant e Honda NSX – que pertenciam a Ayrton Senna – ao chegarem ao autódromo José Carlos Pace para a surpresa que Autoesporte preparou para eles. Tanto a perua alemã quanto o cupê japonês jamais estiveram no circuito paulistano. Por isso, no mês em que se completam 20 anos da morte do tricampeão, resolvemos homenageá-lo por meio de seus dois esportivos preservados em estado de 0km e que, há duas décadas, não sabem o que é andar rápido.
Tomando a devida licença para o universo imaginário (quem nunca conversou com um carro?), batemos um bom papo com a dupla rara de modelos, guardada até hoje pelo irmão de Ayrton, Leonardo Senna. Entre fotos e aceleradas, eles falaram sobre suas características técnicas, da saudade que têm de serem cuidados por um dos maiores pilotos da história do automobilismo e do prazer sentido ao percorrer, com pista molhada, os 4.309 metros do palco do GP do Brasil de Fórmula 1.
Antes de deixá-los soltos na pista para se divertir, fizemos as devidas apresentações, pois o S4 Avant e o NSX ficam guardados em locais diferentes na zona sul de São Paulo. “É muito triste isso porque temos muito em comum, apesar de nossas escolas diferentes de criação”, desabafou o modelo da Audi. “Gostei desse alemão porque, além dos gostos parecidos [curtimos acelerar], vivemos o mesmo drama desde que o Beco [apelido de Senna] se foi: só saímos nas ruas para uma voltinha no quarteirão, calibrar os pneus, encher o tanque e tomar uma ducha. Nada mais. Possuímos DNA de velocidade e um antigo dono que sabia o que queríamos”, acrescentou o Honda, exibindo seus charmosos “olhos” escamoteáveis.
Desenvolvido com a colaboração de Senna (que à época pilotava para a McLaren-Honda) e lançado em 1990, o NSX era um dos carros prediletos do tricampeão para brincar em suas horas vagas por mesclar esportividade, conforto e acabamento refinado. O piloto ganhou três exemplares da Honda e o único preservado por sua família é esta impecável unidade 1992. “Você olha com admiração para o meu hodômetro com apenas 5.829 km, mas eu adoraria estar bem mais rodado.”
“Sem querer me gabar, mas eu tenho linhas atuais e aerodinâmicas para a minha idade e fui concebido para andar forte. Meu monobloco, por exemplo, é de alumínio e meu motor central traseiro 3.0 V6 de 273 cv e 29 kgfm tem bielas de titânio. Digo com orgulho que fui o primeiro modelo vendido fora do Japão a utilizar comando variável de válvulas da Honda, batizado de V-TEC. Portanto, pise forte no pedal do acelerador, por favor”, disse o nipônico equipado com câmbio manual de cinco marchas, de engates curtos e precisos.
“Tenho tração traseira, por isso achei muito divertido contornar o ‘S’ do Senna. Você só precisa ser mais arrojado para sentir a traseira escorregar, já que minha distribuição de peso é de 42%/58%, quase o perfeito equilíbrio. O Beco sabia explorar os meus limites, mas não se sinta chateado por isso”, acrescentou o Honda enquanto jogava marcha para cima, contornando a Curva do Sol.
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“Como é bom sentir o ronco metalizado do motor invadir a minha cabine. Ela foi inspirada na do caça F-16, sabia? E como você notou, só há espaço para duas pessoas. Percebi também o sorriso no seu rosto por causa da posição baixa de dirigir e de fácil ajuste, com direito a regulagem elétrica dos bancos de couro. Meus comandos ficam todos à mão. Está vendo que o conta-giros vai até 9 mil giros? Faça então as mudanças de marchas nessa faixa de rotação. O ponteiro encosta com facilidade lá”, orientou o NSX antes de nos aproximarmos da curva seguinte, a Descida do Lago.
“Muito interessante o miolo desse circuito. Me fez lembrar de como minha carroceria fica grudada no asfalto, graças às suspensões independentes com braços sobrepostos. Foi uma das contribuições do Beco em meu projeto. Minha direção sem assistência é bastante precisa para condução em pista e não exige tanto esforço mesmo em curvas mais fechadas como essa aqui, o Bico de Pato. Nossa, que descida empolgante essa, da Junção. Não sinta medo, eu tenho controle de tração e freios ABS. Pode correr.”
Após cruzar a linha de chegada com o velocímetro marcando 150 km/h (os pneus originais bastante gastos não permitiram grandes abusos) e passar novamente no famoso ‘S’ em meio à emoção, velocidade e saudade, o Honda NSX voltou para os boxes. Era a vez do Audi S4 Avant, que aguardava com os faróis de xenônio ligados, movimentar seu motor 4.2 V8 de 280 cv e expressivos 40,8 kgfm, administrados com maestria pela transmissão manual de seis marchas e tração integral. “Minha embreagem é mais pesada que a do Honda?”, questionou a competitiva perua enquanto percorríamos o pit lane.
Ela estava emocionada e fez questão de esclarecer qualquer equívoco do passado: “O Senna pilotou um S4 aqui, mas não era eu. Foi uma versão sedã, no início de 1994. Eu fui o primeiro Audi trazido ao Brasil por importação oficial, era um dos carros preferidos do Ayrton para transportar seus aeromodelos e sempre pedi a ele para me trazer aqui. Infelizmente, não tivemos tempo para isso”, revelou o exemplar 1993, cujo hodômetro registrava apenas 4.778 km rodados.
“Estamos percorrendo o Laranjinha, não é? Lembra da ultrapassagem que ele fez sobre o Damon Hill para assumir a liderança do GP de 1993? Um passão drible lindo, após ameaçar sair por fora. Acelere com um pouco mais de vigor, por favor. O botão no console que permite o bloqueio do diferencial do eixo traseiro não está acionado, portanto, você não fará qualquer bobagem”, ressaltou.
“Fico feliz em notar que, apesar de ser uma perua e dos meus 21 anos de vida, eu ainda fico extremamente firme nas curvas com minhas suspensões independentes. Meus pneus originais também não estão fazendo feio, né? Duvido que se estivesse comigo o Beco teria rodado na Descida do Lago”, comentou o Audi, em referência ao abandono do tricampeão no GP do Brasil de 1994.
“Ele reclamava demais do cockpit apertado daquela Williams. Na minha cabine, ao contrário, o Beco tinha muito espaço e todos os requintes que você está vendo: bancos de couro com sistema de aquecimento, ar digital e toca-fitas que ainda funciona. O Honda me disse que ele tem um telefone no console... só isso eu não tenho, mas em compensação eu disponho de uma fileira extra de assentos caso queira transportar sete ocupantes.”
Na reta dos boxes, o velocímetro belisca os 180 km/h antes da freada para o ‘S’ do Senna. “Desculpe-me pelo susto. Os meus freios já não são tão eficazes, por falta de uso. Mas você percebeu como ganho velocidade com rapidez e sou ágil mesmo quando é preciso corrigir o ponto de tangência? Minha direção com assistência hidráulica é precisa também, note isso enquanto nos dirigimos novamente para a reta oposta”, sugeriu o S4 Avant, um pouco antes de pedir para que diminuísse a velocidade naquele trecho.
“Queria ter visto isso aqui quando a torcida invadiu a pista, exatamente nesse ponto, para festejar a vitória de 1993. Foi nesse local também que ele estacionou após vencer em 1991. Estava sem forças, exausto por pilotar um carro com apenas uma marcha nas voltas finais. Quanta saudade...”
De volta aos boxes, o cupê e a perua passaram a ter outro detalhe em comum: um sorriso incontido, num misto de felicidade e emoção. “O Beco sabia nos divertir. Quantas vezes ele saiu rasgando, levantando fumaça dos pneus! Como era bom isso. Você não chegou nem perto de como ele teria acelerado com a gente em Interlagos, mas tudo bem. Foi o suficiente para nos fazer vibrar, lembrar de nossos dias áureos. Ele nos faz muita falta mesmo após 20 anos. Mas sabemos que ele sempre nos visita; a chuva de hoje é a maior prova disso.”
http://revistaautoesporte.globo.com/Analises/noticia/2014/05/aceleramos-os-carros-de-rua-de-ayrton-senna-em-interlagos.html